27 de abril de 2012

Um Anônimo 7



Despertou no escuro das masmorras do castelo. Estava molhado de suor, sentindo frio e náuseas. Haviam enrolado bandagens sobre seus ferimentos, mas nada mais e ele precisava de pontos. Enquanto jazia inconsciente, delirou com sua infância, quando era um garoto órfão, largado a própria sorte aos 13 anos. Viu novamente seus pais sendo assassinados em Konia na campanha expansionista de Jakinar pelas Terras Úmidas e lembrou dos dias que seu mestre o visitava debaixo da ponte e tentava convence-lo a unir-se à Irmandade.

Tentava voltar a si, se concentrava na textura da palha seca, precisava permanecer nesse mundo. Sentiu a ponta das unhas, precisava corta-las, as unhas quebradas continuavam assim, mas não haviam infeccionado apesar de não tê-las protegido com nada. Ouviu passos no corredor, eram passos leves, quando eles pararam na frente de sua cela, olhou para cima em sua posição torta, uma mulher trazia uma incandescente tocha que iluminava seu rosto pálido e uma bolsa na outra mão.

Tinha um olhar desconfiado, mas mesmo assim, colocou a bolsa no chão e pegou do cinto um molho de chaves, no qual escolheu uma e abriu a cela. Entrou com cuidado, esperando alguma reação violenta, depois de tudo o que tinha feito e tinham-lhe contado, ela esperava um super-homem, mas só encontrou um moribundo de cócoras na palha. Procurou um suporte na parede e quando achou, fincou a tocha nele e se ajoelhou ao lado do homem para examina-lo.

A mulher levantou a camisa rasgada e viu as bandagens ensanguentadas, olhou para ele e disse:
- Preciso que você se sente para eu poder dar os pontos que você precisa - tinha uma voz aguda, mas suave - Consegue se sentar?
- Já...estive...pior - disse entre calafrios

Usou o braço direito para virar as costas para ela e ficar de lado, podia sentir a dor da pele aberta repuxando, parou um instante para recobrar o fôlego e com a ajuda da garota, usou o outro braço para se sentar. Ela então desatou o nó e começou a desenrolar as bandagens vermelhas.

– É verdade que matou o nosso velho rei?
– Sim – não via porque esconder qualquer coisa agora
– Imagino que você teve uma vida ocupada – fez uma careta ao ver os ferimentos – vou limpar isso com álcool antes, tudo bem? Só para garantir.
– Você... É médica?
– Estou aprendendo ainda. Me falaram para vir treinar com você, quando o rei novo disse que te queria vivo.

Ela despejou o líquido em um pano e encostou na borda de uma ferida, que fez o anônimo arquear as costas por reflexo, o trazendo de volta à consciência por alguns instantes, esquecendo dos calafrios e da fraqueza para se concentrar no ardor, ainda assim não soltou nenhum lamento enquanto ela continuava a esfregar o pano.

– Se todos os pacientes fossem como você, deixaria minha vida mais fácil – sorriu pelo canto da boca – Tentei dar um xarope para um garoto e já foi um sufoco!
– Treinei para lidar com a dor – disse, mais seguro – mas ela nunca desaparece.
– Quer tomar alguma coisa para eu dar os pontos?
– Não é necessário – sentiu o estômago revirar – Se eu desmaiar, melhor, se não, melhor ainda.

Ela então começou a costurar a pele com a agulha curva, puxando as bordas do corte juntas. Ela não parecia ter qualquer nojo daquilo, mas também não tinha prazer, fazia apenas o que era preciso. O Anônimo já tinha sido suturado antes, mas não nas costas, cada agulhada parecia que traspassava para seu pulmão, todos os seu pelos estavam eriçados e suas mãos estavam trêmulas.

A mulher tentou conversar com ele, perguntando aonde morava e o que fazia, ele contou e então que roubava frutas de feirantes e bolsas de dinheiro de homens que andavam pela rua, quando era jovem. Contou que foi muito surrado quando era pego, mas melhorou com o tempo em roubar e correr. Foi quando num roubo, o homem lhe pegou pelo braço enquanto ainda segurava a bolsa, tinha um barba negra e espessa, mas bem feita, tendo os cabelos escondidos por um capuz. Quando soltou a bolsa, o homem o soltou e ele correu, correu para debaixo de uma ponte de madeira escura, onde o rio havia secado por conta de uma represa. Dormia em um monte de palha com um cobertor velho e chamava de lar.

Aquele homem o tinha seguido e lhe apareceu de repente, criticando seu modo de vida e lhe oferecendo algo melhor em outro lugar. O anônimo recusava, achava que nenhuma ajuda vem sem um preço e sabia como as coisas eram, ainda mais para uma criança. Mas quanto mais o homem lhe falava daquele lugar, o lugar dos homens honrados, o lugar dos homens que não podiam ser derrotados, mais o garoto se interessava e quando ele foi visitar o castelo onde essas pessoas eram treinadas, se convenceu a ficar.

E realmente, todo o conforto que teve, veio com um preço, o preço do treinamento duro, o preço dos juramentos de sangue, o preço da dor. Tinham-lhe transformado em uma ferramenta assassina, mas nunca conseguiram mudar quem ele era e seu modo de pensar. Foi assim que cresceu, com a mente ativa, questionadora dos próprios princípios da irmandade, porque despida de toda honra, ela era uma empresa e uma fábrica de assassinos de aluguel, matando para quem pagasse mais.

Quando a garota terminou o ultimo ponto, Hakim já não se lembrava do quanto havia falado, foram dez minutos que mais pareceram horas, sua respiração estava ofegante e os pontos que havia levado latejavam.

– Essa foi uma história incrível, tão diferente da minha vida simples – procurou por algo mais na bolsa – Coma uma maçã, vai se sentir melhor.
– Espero... Que ela não esteja envenenada.

Ela riu e ele deu uma mordida na maçã, ainda de costas, não ousava se mover dali, provavelmente nem conseguiria. A garota limpou a agulha e a guardou em uma pequena pasta de couro, que continha outros instrumentos. Jogou tudo dentro da bolsa e pegou a tocha para ir embora:
- Em alguns dias, os reis vão se reunir para te julgar, eu vou voltar para garantir que você esteja vivo até lá.
– Qual o seu nome?
– Hasnah e o seu?
– Pode me chamar de Kai.

A garota então saiu pela porta da cela e a fechou, virando a chave. Kai ficou ali, pensando que talvez tenha cometido um erro em contar tanto para uma mulher que nem conhecia, enquanto pessoas que ele chamava de amigos, não sabiam nem seu nome. Poderiam tortura-lo por dias e ele nada falaria, deixa-lo morrer de fome e sede e ele permaneceria mudo, mas de todas as armadilhas que lhe poderiam jogar, caiu na mais cruel, as graças de uma mulher.

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