– O que está fazendo, Kai?
– Meditando – disse o Anônimo de olhos fechados – Você não acha esse cheiro repugnante?
– Acho, mas tudo bem. – falou Hasnah fechando a porta da cela atrás de si – Chegaram os últimos dois reis, de Nove-Delfine e de Damascus. O Conselho das Terras Secas vai se reunir provavelmente amanhã.
– Isso é ótimo – sorriu ainda de olhos fechados – Quer aprender a meditar?
– Claro! – sentou-se à frente dele, imitando sua posição – Devo fechar os olhos?
– Feche os olhos, vou te dizer o que fazer. Respire fundo e deixe o caos se instaurar na sua mente, deixe os pensamentos fluírem como quiserem, até os ruins.
– Acho que consegui, não é muito confortável.
– Agora observe esses pensamentos como se estivesse olhando peixes em um lago, os deixe nadar enquanto você se afasta e emerge desse lago. Você não pode mais senti-los, mas ainda pode vê-los. Pense na qualidade desses pensamentos, quais deles estão apenas poluindo sua mente? Quais deles não lhe servem para nada de bom?
– Alguns...
– Agora, elimine os pensamentos inúteis e concentre-se apenas nos úteis e bons, sinta o controle da sua mente, seu domínio absoluto sobre você mesma, senhora de seu destino.
– Isso é bom e agora? – ouviu um abrir e fechar de uma porta de ferro e virou para trás
– Agora, fique meditando até virem te buscar – falou o anônimo do lado de fora, trancando a cela – Sinto muito, mas a hora chegou. Se servir de consolo, prometo que não passará nem um dia aqui.
– Eu devia ter imaginado – levantou-se e foi até a grade da cela – Não vou guardar rancor de você, Kai, mas ficar presa numa cela não fazia parte dos meus planos para hoje.
– Obrigado por estar aqui. Se eu nunca voltar a te ver, quero que saiba que isso poderia ter dado certo em outra vida.
Foi embora sem ouvir qualquer resposta de Hasnah, que apenas sorriu enquanto Kai mergulhava nas trevas. Subiu as escadas em caracol das masmorras, chegando na sua porta de madeira que estava destrancada, abriu-a com cuidado, mas ela não deixou de produzir um rangido agudo. Como imaginava, tinham dois homens guardando a porta, um de cada lado, que pareciam não ter se importado com o rangido. Hasnah atravessou aquela porta tantas vezes que eles nem se davam mais o trabalho de se virar. O homem da direita foi o que perdeu a espada primeiro, em um movimento rápido, mas sutil, Kai tirou a espada de sua bainha e virada para baixo, a enterrou em seu desprotegido pescoço.
O outro notou o estranho movimento, mas só se deu conta e começou a puxar sua espada quando o colega teve a lâmina atravessada na garganta, o que deu tempo para o Anônimo impedir seu saque com uma mão e usar a espada, ainda como um punhal, e abrir sua carótida da direita para esquerda, aproveitando o movimento lateral para puxar a espada do guardião de sua bainha e dar um passo para trás, o bastante para a nova espada ter espaço o bastante para terminar de degolar o guardião, da esquerda para direita dessa vez, caindo no chão em uma torrente de sangue. Hakim estava de volta.
Tirou a armadura do primeiro homem, usando sua camisa para limpar um pouco do sangue que grudara nela, terminando por vesti-la. As armaduras eram feitas sob medida, mas aquela estava um pouco larga. Jogou os corpos dos homens nos degraus que levavam à masmorra e usou suas calças e o que estava limpo da camisa para enxugar o sangue do chão, não foi um trabalho perfeito, mas não chamaria atenção de alguém que passasse ao longe, descartando tudo na masmorra e fechando sua porta. Hasnah não gostaria disso, mas nem ele gostava. Recordou-se novamente da geografia do lugar e elaborou uma fuga.
Já era noite e os quatro reis se reuniam no salão de festas do castelo. O rei padeiro Ezaquiel, ficava na ponta da mesa retangular, com sua esposa ao lado. Os outros reis ficavam distribuídos cada um de um lado com suas respectivas esposas. Seus filhos comiam em uma outra mesa retangular, mais distante e menor que a primeira que ocupava o centro do salão, enquanto essa era atravessada em um canto, paralela a uma parede. Comeram ali por cerca de uma hora, uma refeição com direito a terceiro prato e uma sobremesa. Ao final, as mulheres e crianças foram deixadas e os homens se reuniram em um salão ao lado, muito menor e mais aconchegante, com uma grande lareira e quatro cadeiras de couro dispostas em círculo, para todos poderem encarar todos, com uma mesa ao centro delas.
Os reis sentaram-se naquelas cadeiras e fumaram charutos, tomando mais daquela bebida forte de sabor amadeirado, conversando sobre como suas políticas fizeram a economia de suas cidades se estabilizar e prosperar. O rei da Mesôtona, Alifa, tinha escolhido uma roupa vermelha dessa vez, mas ainda usava maquiagem branca para disfarçar sua pele morena, dissertava sobre como o povo não pode ser livre ou ele acaba por destruir-se. O rei de Nove-Delfine, Abrah concordava com o controle das massas, mas garantia o controle do indivíduo sobre si mesmo, sempre procurando alisar seu espesso bigode entre uma frase ou outra. Possuía uma pele levemente morena com um ponto preto pintado na testa esticada pela calvície. Sandor, ficava quieto, concordava com alguma coisa quando falavam de liberdade individual, mas na maior parte do tempo, não participava. Era o mais velho de todos, apesar de ainda possuir certa vitalidade em sua face severa, permeada em boa parte por uma barba negra bem aparada e um cabelo curto encaracolado.
– Amigos, obrigado pela bela noite – começou Ezaquiel – mas acho que devemos encerrar por hoje. Amanhã faremos o julgamento do assassinos de reis, pela tarde para aliviar a eventual ressaca, por isso precisamos estar afiados.
– Condenemos o homem logo, ele é um risco – disse Alifa – Aliás, é garantido que foi apenas ele que cometeu os assassinatos? Acho difícil de acreditar.
– Se foi apenas ele que os matou, – comentou Abrah – acho que deveríamos agradecê-lo, do contrário, nunca seriamos reis e ainda estaríamos na miséria.
– Mas um homem deve pagar pelos seus crimes – retrucou Ezaquiel
– Sem contar na nossa própria segurança – falou Alifa, receoso – Ele matou muito mais do que aqueles reis, deve pagar o preço da morte.
– Quem dá uma sentença dessas, deveria brandir a espada
Todos se viraram para a origem da voz, era o Anônimo se servindo da bebida e trajando suas costumeiras roupas brancas, armado de suas facas. Ele pegou a bebida e foi ficar a frente da lareira, se virando para os reis, entre o vão das cadeiras onde estavam os reis da Nicosa e da Mesôtona.
– Surpresos? Eu gosto do elemento surpresa, foi assim que nosso rei me capturou, no meu próprio leito – tomou um gole da bebida – Essa é diferente da que eu tomei naquela ocasião, Ezaquiel, tem um gosto mais esfumaçado.
– Devia ter imaginado que você sairia de lá. Aquela garota não era confiável.
– Nesse caso, os dois guardiões que eu matei também não eram, nem tentaram me impedir depois que eu os cortei a garganta. – virou o copo e o repousou na mesa – Mas estou dando uma má impressão. Meu nome é Hakim, assassino de reis, treinado pela Irmandade, a grande sociedade de assassinos.
– Você matou a todos sozinho? – perguntou Alifa de olhos arregalados – Você veio nos matar?
– Eu os matei sozinho, como contei ao rei Ezaquiel, mas não vim matar vocês, vim garantir a queda da Irmandade com vossas senhorias.
– Na verdade eu gostaria de te agradecer e agradecer a sua Irmandade, sem vocês, eu não estaria aqui – riu-se Abrah, entorpecido.
– Eu entendo – falou Ezaquiel – Mas você ainda é culpado dos assassinatos e tem que pagar por isso perante a lei.
– A lei é falha, Ezaquiel. Os senhores precisam criar novas leis para suas cidades. Morte não pode ser paga com morte. Do contrário, uma sociedade não se pode dizer melhor que o assassino. – os reis repousaram sobre aquele conceito por alguns instantes – Levantem-se para glória, meus reis, serão famosos por abraçarem essa idéia, os reis misericordiosos, os reis justos, todos pagam pelos seus crimes em vida, a verdadeira justiça dos homens.
– Vejo que teve muito tempo para pensar, senhor Hakim – comentou, finalmente, Sandor – Gostei da ideia, embora lhe favoreça bastante, é algo que eu posso dizer que concordo. Justiça dos homens feita pelos homens.
– Não deveríamos discutir isso com um assassino – protestou Alifa
– Mas aqui estamos Alifa, o assassino propõe vida a todos os homens, inclusive ele – comentou Ezaquiel – Deseja a vida para seus irmãos da Irmandade?
– Para eles e para todas as pessoas, mas o importante é que não sejam criados mais assassinos pela Irmandade. Nenhum homem tem o direito de matar o outro e eles vêm fazendo isso há décadas.
– Não é exatamente o que você vem fazendo sua vida inteira? – disse Alifa
– Eu fiz o que era necessário, o que eu achava certo, mas descobri estar errado. E se não acabarmos com a Irmandade, muitos garotos vão crescer para um destino de assassinatos sem sentido e isso também põe vocês em risco.
– Acabaremos com a Irmandade – disse Sandor – Não podemos ter um bando de assassinos de aluguel à solta. Acredito que podemos todos concordar com isso, meus amigos.
– Eu posso concordar com isso – proferiu Ezaquiel
– Eu também – soluçou Abrah
– Vocês estão loucos – interferiu Alifa – Eles são assassinos profissionais, se um deles conseguiu matar 10 reis, o que acham que farão conosco unidos?
– Por isso eles têm que ser detidos – retrucou Sandor – Às vezes, meu caro, a melhor defesa é o ataque. Você tem um plano, senhor Hakim?
– Eu tenho algo em mente. Mas antes de irmos em frente com isso, preciso negociar minha sentença.
– Isso é um pequeno detalhe, senhor Hakim. – continuou Sandor – Tendo em vista que você trouxe um conceito interessante sobre nossas leis, o que mostra que é um bom homem e que expôs uma ameaça muito mais assustadora do que você próprio, que agora não representa perigo, estou disposto a lhe conceder liberdade se eliminar essa ameaça. Mas não posso falar pelos outros.
– Por mim tudo bem, o rapaz sabe mais dessa sociedade do que nós e talvez devêssemos rever nossas leis, – disse Abrah – mas uma coisa de cada vez.
– Quem garante que essa ameaça exista? – indagou Alifa
– Garanto que a Irmandade é real, existem provas – afirmou Ezaquiel – Eu não esperava a introdução de Hakim em nossos planos, mas tendo em vista o difícil jogo que temos em mãos, posso trocar sua vida pela extinção da Irmandade. Não posso garantir que mudarei as leis, isso precisa ser pensado melhor.
– Eu lhe concedo perdão, com a condição de eliminar a dita Irmandade e garantir minha vida, assassino – concluiu Alifa
– Isso ocorreu muito melhor do que eu imaginava, senhores – sorriu Hakim – Precisarei da influência de vocês e alguns homens. Garanto que o mínimo de sangue seja derramado. Após esse trabalho, não precisarão se preocupar comigo.
– Mandaremos os Hamadim para lhe auxiliar – completou Sandor
– Quem são os Hamadim? – perguntou Hakim
– O grupo que formamos para te capturar – disse Abrah – Você deu uma boa talhada na perna de Jokal, era meu homem, mas tenho certeza que podem chegar num acordo.
– Quantos homens possuem os Hamadim?
– Quatro homens, os melhores guerreiros de cada cidade – falou Ezaquiel, enchendo o copo do Anônimo na mesa – Somados a você, será um grupo invencível. Destrua essa ameaça invisível e terá sua liberdade, todos concordam?
– Sim – proferiram todos em uníssono, brindando em seguida pela resolução desse complicado empasse.
Um homem trouxe um problema e sua solução, os novos reis das terras secas não precisam se preocupar em serem assassinados no futuro, destruiriam seus inimigos antes deles se levantarem contra eles. O homem sai livre, com a condição de destruir sua antiga Irmandade, a garota sai da masmorra e segue sua vida como se nada tivesse acontecido, mas algo de extraordinário tinha acontecido, ela tinha mudado, tinha conhecido o homem mais interessante que já vira, cheio de cicatrizes e ideias, que continua a vagar pelo deserto e pelo mundo atrás de seus ideais, mas ele também tinha mudado, virara um homem, com consciência e não mais uma simples ferramenta.
Uma parte da vida do Anônimo concluiu-se essa noite, mas a guerra estava apenas começando.