4 de maio de 2012

Um Anônimo 8


Estava claro, tinha conseguido dormir mas o Anônimo ainda pensava na garota. Mesmo com a escuridão, começou a lembrar-se de suas características, devia ter seus 20 anos, ainda não tinha as marcas de expressão da vida e nem as mãos calejadas do trabalho pesado, muito menos o bom senso de não suturar um assassino. Pensou em como as coisas poderiam ter sido diferentes se nunca tivesse concordado em fazer parte da Irmandade, talvez viveria como um camponês, colhendo trigo e criando animais, uma vida tranquila com uma garota como ela que em seus pensamentos era ela, com seus cabelos e olhos negros e pele macia e pálida, como de uma princesa.

Um estalo lhe veio a mente, e se a garota fosse filha do rei? Enviada apenas para recolher informações que seriam usadas contra ele no dito conselho? Era uma possibilidade que ele não poderia riscar, todos eram seus inimigos agora, agora que estava “preso em uma gaiola” ouviu essas palavras atrás de si, se virou para encontrar um homem de roupas brancas e capuz do lado de fora da cela.

– ...você já teve dias melhores, Hakim – disse o homem com o rosto encoberto pelas sombras – Vim te libertar.
– E me matar, decerto, Yaman – disse, levantando da palha – Como souberam do meu paradeiro?
– Somos a Irmandade, sabemos tudo. É claro que a notícia que tinham capturado o assassino de reis, também se espalhou rápido pelas cidades, mas nos sempre sabemos.
– Bom, hora de abrir a cela e me matar. Você vai me fazer um favor na verdade.
– Eu vim te libertar dos seus deveres com a Irmandade – falou mostrando um papel por trás da porta – Você é o primeiro que foi permitido deixar a Irmandade.
– Desgraçados, não tem a capacidade de me matar e para garantir que eu não escape me concedem um perdão para eu não sujar o nome da sociedade – disse de forma a assustar o outro – Me dê esse papel aqui, eu vou mostrar quem é a verdadeira Irmandade
– Não posso permitir – deu um passo para trás – Meu dever é avisar que está livre. Se no seu julgamento disser que faz parte da Irmandade, negaremos, afirmando que você saiu há muito tempo.
– Melhor ir então, podem querer que você me faça companhia e eu não apreciaria você ocupando o mesmo lugar que eu mijo.
– Hakim, tenho que dizer que foi uma honra tê-lo conhecido e apoio o que você fez. Adeus – disse com a cabeça baixa e depois partiu pelas sombras

Voltou a se sentar, com cuidado para não romper os pontos. Não estava nenhum pouco livre, isso era apenas um jogo político para proteger a sociedade de assassinos, se por acaso ele saísse vivo, eles viriam lhe matar e encerrar o assunto, mas contavam com sua sentença de morte no julgamento.

A garota voltou naquele dia, trouxe comida e bandagens novas, a comida era uma pasta de legumes e carne fria, pouco atraente, mas que Kai comeu sem reclamar, enquanto a garota trocava as bandagens que estavam sobre os pontos.

– Você parece mais calado hoje – disse ela, percebendo a frieza de seu temperamento
– Diga a seu rei que procure a Irmandade ao qual eu pertenço, se já não tiver contado. Eles podem estar interessados nos mandantes dos assassinatos. Diga que é uma conspiração contra mim e que a sociedade é completamente responsável e eu sou seu bode expiatório.
– Isso é tudo verdade? – disse com um tom de surpresa
– O rei vai te questionar, mas diga-lhe que está é a verdade. A Irmandade precisa ser trazida a julgamento.
– Um dos reis novos chegou, o rei de Mesôtona, ele estava todo pomposo com roupas azuis, amarelas e a cara branca de maquiagem, parecia uma arara, você já viu um arara?
– O que é isso? – deixou escapar uma pitada de bom-humor e curiosidade
– É um pássaro azul com um bico curvo, bem exótico por aqui. Eu vi alguns nos mercadores de rua, são bem bonitos, mas caros.

O Anônimo não falou mais, queria conservar uma distância daquela mulher e não funcionaria se ele ficasse perguntando sobre pássaros. Ela se despediu e disse que voltaria no dia seguinte, com um olhar decepcionado e um meio sorriso no rosto. Pensou que ela não poderia ser uma princesa, ela tinha saído do castelo, mas do jeito que o rei era um homem tranquilo, provavelmente deixaria sua filha livre para ir e vir. Já não sabia o que pensar, sabia apenas que estava suprimindo suas emoções, fechou os olhos e meditou sobre si mesmo, ao invés do mundo exterior.

Se considerava uma ferramenta, uma força implacável, mas agora era um homem ferido em uma masmorra de castelo, sentindo amor por uma mulher que apenas lhe auxilia e ódio por uma sociedade que o quer ver morto. Ele tinha um objetivo e o conquistou, como um homem e agora deveria pagar pelo que fez, como um homem perante outros homens. Acreditava que o rei padeiro, Ezaquiel, era um homem justo e se para ele sua morte era a única resposta ao assassinato, que assim fosse.

Mas seu instinto de lutar e viver ainda falava mais forte, não poderia se entregar a morte, mesmo que sua consciência o dissesse que deveria pagar pelo que tinha feito. De qualquer maneira, a Irmandade precisava cair, eles também deveriam ser julgados e se morresse, precisava garantir que o rei fizesse o trabalho por ele, mas ainda precisava faze-lo acreditar na história que havia contado para Hasnah. No dia seguinte ela voltou e trouxe outro tipo de comida, uma sopa de milho. Sentia que seus ferimentos estavam melhorando e provavelmente poderia arriscar uma escapada quando ela viesse nos outros dias. Dessa vez, não sentia que precisava manter distância dela, sentia que precisava conversar com alguém.

– Eu mesma fiz essa sopa – disse ela enquanto trocava as bandagens – Espero que esteja boa...
– Está boa. Contou ao rei o que eu te falei?
– Eu não tive como falar com ele em particular – sorriu – Uma aprendiz de médica não tem muita voz aqui. Talvez eu deva dizer que sou médica do assassino de reis, aí vão me respeitar.
– Isso não soou muito bem, melhor esquecer o que eu te disse – Kai também sorriu – No meu julgamento eles vão ter que me ouvir. Porque você me ajuda e não tem medo de mim?
– Quando eu cheguei aqui, não vi nada além de um homem precisando de cuidados e você, até agora, não deu motivos para eu ter medo – falou a garota com sinceridade – Eu não acho que você é um assassino, eu disse aquilo como uma brincadeira.
– Mas eu matei aqueles reis mesmo. E muitas pessoas antes deles e provavelmente ainda vou matar mais, porque, apesar de tudo que eu te contei, eu sou bom nisso.
– Eu acho que te entendo – disse ela dando um nó em uma bandagem – Você foi criado para isso e agora está em um beco sem saída. Eu também faria de tudo para ficar viva.
– Minha consciência me diz que eu mereço ser julgado, meus instintos dizem para tentar de tudo para viver e eu te digo que a Irmandade precisa ser destruída. Esse é meu objetivo no momento e é por ele que eu quero viver – segurou a mão dela deixando o prato de lado
– Você quer que eu te liberte? – os cabelos negros refletiam a luz da tocha
– Até esse momento eu não sabia o que fazer, mas agora eu sei. Eu quero viver, eu quero destruir a Irmandade, depois eu posso ser julgado e morrer.
– Você deve ser a pessoa mais interessante com quem eu já conversei e a mais maluca – olhou para o lado – Eu não posso deixar você escapar, cortariam minha cabeça por isso.
– Eu não quero estragar sua vida e não quero que me deixe escapar. Só quero que você volte, até o dia do julgamento. Pode fazer isso por mim?
– Posso – sorriu olhando para a mão – Posso ter minha mão de volta?

Kai soltou a mão, os dois sorriram e Hasnah saiu pela porta da cela novamente, trocando um último olhar enquanto ela ia embora. Sabia que mesmo que ela fosse uma espiã, tinha que jogar o jogo dela, só assim teria uma chance de escapar. O dia do julgamento se aproximava e ele sabia o que deveria fazer agora, não mais como uma ferramenta, mas como um homem, deveria acabar com a Irmandade e a melhor forma de fazer isso não era pelo assassinato, mas pela política.

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