13 de abril de 2012

Um Anônimo 5




Hakim e Jullius conversaram por mais um tempo, depois de terminarem de jantar. Jullius chamou algumas mulheres para dançarem para eles e ali ficaram bebendo e fumando com tudo do melhor que aquelas terras secas poderiam oferecer. Já era por volta da meia-noite quando o anônimo se despediu e voltou ao seu quarto.

Pegou sua bolsa pequena com os itens que tinha separado, o sangue tinha sumido, fazia parte de seu tratamento especial naquele lugar. Por fim pulou na mesa, com a tira de couro de sua bolsa atravessando o peito, abriu a janela e a atravessou.

Procurou reentrâncias e pedaços de arquitetura e sem dificuldades, mas devagarmente, desceu a parede de tijolos que foi recém reformada para dar um ar belo ao prédio. Não viu ninguém quando finalmente pousou, mas pelo costume, pegou seu capuz e o colocou sobre a cabeça escondendo seu rosto pelas sombras. Andou devagar em direção ao grande castelo, por vezes via ratos e baratas fazendo suas rondas noturnas pelas ruas e lembrou-se do juramento que fez em não matar nada que não possua consciência e isso incluía todos os animais, mesmo as pragas. Isso não importava mais agora, poderia esmagar quantas baratas desejasse.

Chegou ao alto muro que cercava o castelo, construído há muitos anos com grandes blocos de pedra e argamassa, feita de uma mistura de água, terra e areia. Circundou o muro, procurando algo, mesmo cada pedra sendo idêntica à outra. Quando achou o que procurava, parou, uma parte da argamassa que escorria petrificada por entre os tijolos estava gasta, como se tivesse sido cavada por uma faca, olhou para cima e viu vários trechos cavados da mesma forma, era por ali que trabalhadas que lembram pontas de flecha, sendo colocadas intermitentemente, deixando um espaço suficiente para um homem passar, se ali tivesse chegado. Hakim descansou ali por um instante, tinha rachado duas unhas e estava suando, mas sabia que a parte difícil já havia passado. Agora bastava descer com cuidado cerca de um metro e meio e pular para o galho de uma árvore que crescia rente ao muro, por sorte a árvore continuava de pé no mesmo lugar, mas agora parecia melhor podada.

Desceu pelo muro e olhou de costas para o galho, só podia dar impulso com as pontas dos dedos, então ficou um pouco acima dele, para compensar a força da gravidade, pulou para o galho esticando seu corpo e dando um ultimo impulso com a perna direta, o galho veio até ele que por sua vez o abraçou com o braço direito, para não perder o equilíbrio e usou o esquerdo para aliviar o impacto junto com seu joelho. Engatinhou como um tigre numa árvore e desceu os galhos até o último, de onde pulou.

Repetia os mesmos passos que naquela noite há um ano atrás, tudo estava onde lembrava, os bancos, a grama, as flores, mas pareciam ter alguma vida agora, um cuidado especial. Achou outro caminho que tinha feito, esse dava para uma janela quebrada por onde tinha entrado com facilidade. Escalou a construção e chegou a janela do primeiro andar, tinham-na trocado por completo, o anônimo pegou sua faca e a forçou pela brecha da janela com apenas uma mão, já que a outra estava segurando o parapeito, forçou a faca para cima até sentir a resistência da tranca, que foi quebrada pela sua força.

Abaixou a cabeça para abrir as janelas e entrou na escuridão do quarto que não estava sendo usado por ninguém. As portas, é claro, não estavam trancadas, daria mais trabalho destranca-las com a chave mestra do que deixa-las abertas e assim ficavam. A guarda do rei impediria qualquer ameaça que ousasse cruzar os muros do castelo e há um ano aqueles corredores mal iluminados estavam realmente cheios de guardas, utilizou-se de muitas portas destrancadas para estocar corpos, mas hoje não havia ninguém, só as tochas acesas por óleo de peixe.

Rumou pelos corredores, lembrando-se do caminho que tinha decorado quando fingiu ser um serviçal para saber a localização dos aposentos do rei. Não viu nenhum guarda em seu caminho, mas ouviu a voz de uma homem quando virou a esquina de um corredor, começou então a andar silenciosamente, procurando com seus ouvidos a origem do som, andou alguns metros até ver uma porta entre aberta em que discerniu um “boa noite”, jogou-se ao chão e espreitou pela porta, viu um homem alto se levantando de uma cadeira, que moveu até um lado do quarto, enquanto havia duas camas, uma do lado da outra, com uma criança em cada.

Tirou a cabeça do batente e levantou-se, abrindo a porta ao lado, à encostando e deixou apenas espaço o bastante para poder ouvir os passos do homem quando saísse. Ouviu o leve ranger da porta, mas depois disso nada. Ele não estava vindo em sua direção ou já o teria ultrapassado, então estava indo para os aposentos do rei, pensou. Saiu dali e o seguiu a passos leves, sempre se encostando nas portas, para caso o homem se virasse, ele teria como sumir.

O provável rei usava um pijama de linho, longo e calçados feitos de pano, por isso não faziam barulho. O homem virou várias esquinas por aqueles corredores e Hakim teve certeza que aquele homem não estava indo para os aposentos do rei, se fosse um criado, estava perdendo tempo, mas como nunca tinha visto um serviçal do sexo masculino cuidar de crianças, resolveu que valia ver até onde ele iria. Chegou no fim de um corredor, onde abriu uma porta dupla, revelando uma sacada com duas cadeiras apontando para a vista e uma mesa entre elas, que apoiava uma bandeja com vários copos virados para baixo e algumas garrafas de bebida de cores diferentes. O homem virou um copo e verteu 2 dedos de um líquido vermelho, se sentando numa das cadeiras em seguida.

O anônimo se aproximou, colocou as duas mãos na cadeira ao lado e disse:
– Posso-me sentar aqui, senhor?
– Quem é você? – virou-se assustado – Um ladrão, presumo.
– Não vim lhe roubar nada e nem machuca-lo, mas quero ter uma palavra com você, já que é o rei – disse sem ter muita certeza, mas que serviçal beberia no meio da noite
– Eu geralmente tenho reuniões pela tarde – moveu seu corpo para encarar o homem de frente – Mas pelo visto você não é um cidadão comum, sente-se e sirva-se de uma bebida.

O anônimo serviu-se da mesma bebida do rei, tinha um forte cheiro de álcool e sentiu um gosto amadeirado depois da queimação inicial em toma-lo. O rei não parecia preocupado, tinha tomado um susto mas foi só, sua face era quadrada e tinha evidentes olheiras, que lhe davam um olhar de cansado ao mesmo tempo que sério.

– Ouvi dizer que você era um padeiro antes de virar rei, as mordomias dessa vida já lhe corromperam?
– Ha ha, não existem mordomias em ser rei, em governar uma cidade, só problemas para serem resolvidos. Mas eu ainda sou um padeiro, você não deve ter visitado minha cozinha.
– E porque seria? Tem serviçais para fazer esse trabalho para você.
– Nesse caso, eu não teria o prazer de fazer o pão e esticar uma massa me ajuda a relaxar. – tomou um gole da bebida – Assim como cuidar das crianças.
– E beber.
– Aye – levantou o copo para cima – Me tornei rei porque eu sou bom com finanças, mas tento ajudar as pessoas porque esse é o dever de um governante. Imagino que sua Ordem entenda isso.
– O que você sabe sobre minha Ordem?
– Sei que são discretos, mas toda Ordem precisa guardar dinheiro em algum lugar e eu conheço a vestimenta de vocês. Se vocês parassem de usar capuz em todo canto, seriam mais discretos.
– Ha ha, vou me lembrar disso, mas como deixei minha Ordem, seu conselho não vai chegar a eles.
– Não sabia que vocês podiam sair assim, sem mais nem menos.
– Não podemos, mas eu fiz minha escolha – Hakim tomou mais um gole daquela bebida e sentiu queimar
– Você matou os reis, durante esses anos. Achei que fosse um grupo de assassinos, nunca um homem só.
– Eu nunca disse isso – disse sem emoção
– Mas é verdade não é? – olhou para o rosto sem expressão de Hakim – Interessante, você se arrepende disso?
– Não tenho do que me arrepender, além do mais, aqueles reis mereciam a morte.
– Não sou homem de julgar as ações dos outros, mas muita coisa estava ruim realmente e muita coisa ficou pior, depois. Eu lembro dos folhetos, deveria ter deixado isso nas mãos do povo.
– Eu devolvi ao povo sua soberania – deixou escorregar por entre os lábios
– Admiro o que você fez, como um homem só e concordo que o povo é mais forte que seu governo. O problema é não pensarem como um. O problema e a solução do povo é ele próprio.
– Um povo oprimido e letárgico não sabe o que fazer. Eu devolvi a escolha a eles, para o bem ou para o mal, mesmo o mal sendo tão frequente.
– Eu acho que o povo acaba evoluindo. Não podemos viver em cabanas de pedra para sempre, as coisas tem que mudar em algum momento, o povo tem que acordar em algum momento. Mas para mim essa escolha cabe as pessoas e somente elas.
– E se minha interferência apenas adiantou as coisas?
– Nem todas as pessoas estão preparadas para mudar, tudo tem sem tempo de acontecer.

O anônimo ponderou sobre aquilo, era a primeira vez que alguém lhe tinha dado um argumento que o fazia reconsiderar o que tinha feito. Ele era uma ferramenta, mas quem batia o martelo também era ele e devia também ter considerado que nem todos estão prontos para a mudança e uma mudança forçada como tinha feito, só causaria dor a quem não está preparado, não existe opção para eles.

– Eu considero seus pontos válidos. Mas isso não muda meus objetivos e o que eu já fiz. Devo consertar o que está quebrado por minha causa, se ainda puder e por isso estou aqui. Para saber se você vai causar problemas a cidade.
– Eu não sei, provavelmente sim. Terá que vir me matar algum dia, quando eu falhar. Como os outros falharam.
– Se reconhece o valor da humildade e de ajudar seu povo, não vejo motivo para faze-lo. Não conheceu os reis como eu conheci, todos corrompidos pelo poder e pela riqueza, o povo era coadjuvante em seu reinado, apenas ali para serem controlados e provirem o rei. Por isso estão mortos.
– Não é algo que eu faria, – disse o rei, terminando sua bebida – mas vou tomar cuidado.
– O poder corrompe o homem – comentou Hakim
– Discordo, o homem corrompe o poder.

O anônimo terminou sua bebida, abaixou a cabeça em cumprimento ao rei e se despediu, saindo pela porta dupla. Fez todo o caminho de volta, saiu pela janela, agora quebrada, subiu na árvore e pulou para o muro de pedras, descendo calmamente pelo outro lado. Tinha gostado do rei, achou que era um homem sensato e seria um bom governante, por um tempo. No bordel, escalou a parede do edifício e entrou pela janela, a fechou e deixou suas coisas em cima da mesa, tirou sua roupa e iria deitar-se, mas antes, pegou seu capuz e o jogou no lixo.

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